Texto Carla Ferreira Fotos José Ferrolho
À medida que o sol diminui a intensidade, a vida vai regressando às ruas de Santa Clara de Louredo. Ou Boavista, como é de uso comum. A luz do fim da tarde marca a hora de ir à horta, a poucos metros do centro da aldeia mas um caminho que muitos, já de idade respeitável, preferem palmilhar de bicicleta. Rega-se, com água do ribeiro que ali passa junto, colhe-se o que é necessário para o jantar, entre ervas de cheiro e outros hortícolas. De Beja, que facilmente dali se avista, vão chegando do trabalho os mais novos e na rua principal, que dantes fazia as vezes de estrada a caminho de castro Verde, os carros estacionados avolumam-se. Com a aldeia mais composta de gente, o padeiro aproveita para parar e abrir a traseira da carrinha, anunciado pelo já familiar buzinar esganiçado. E as vizinhas sentam-se ao postigo, de conversa umas com as outras, a comentar o movimento e a gozar uma merecida brisa fresca.
Maria Custódia Monteiro, 80 anos, é uma das quatro amigas vestidas preto. Tal como a “maior parte” dos louredenses, também ela chegou a fazer diariamente os oito quilómetros de ida e volta entre a freguesia e a sede de concelho. “Trabalhei a dias em Beja, mas antes trabalhei no campo”, lembra. E suspira, quando se lhe pergunta o que falta às gentes da freguesia: “Ai, tanta coisa”. A começar pelo aumento das reformas, “para a gente poder ter uma vida melhor” até – e isto sim já assunto dos eleitos locais – ao famigerado pavilhão multiusos, que chegou a estar projetado para um novo loteamento, sendo que ambos entretanto parecem ter caído no esquecimento (ver entrevista), entre a crise e a mudança de executivo na Câmara de Beja, em 2009. “Fazia falta sim, sempre dava outra vida aqui à aldeia”, defende a anciã, procurando a aprovação das vizinhas, que exaltam o empenhamento das novas gerações, capazes de fazer omeletes mesmo sem ovos. “Os moços para fazerem o baile, tem de ser ali na escola, ao ar livre”, adianta, secundada por Mariana Martins, com mais quatro anos de vida e para quem “há aí uma juventude muito boa agora”. Graças a eles ou, mais concretamente, graças à associação juvenil Animus Jovem, realizou-se recentemente (entre 5 e 8) a segunda edição da Meia Semana, um evento que ofereceu à população três dias de baile, e um último dedicado à componente religiosa, fazendo sair à rua, como há muito não acontecia, a procissão em honra de Santa Clara de Louredo, parte integrante das antigas festividades tradicionais de setembro. À falta de pavilhão multiusos, usou-se o espaço da escola primária, agora livre em tempo de férias. “São uns rapazinhos que fazem tudo, eles é que fizeram a festa, pediram e organizaram. Mas falta-lhes essa sala grande”, reforça Mariana.
Atravessando a estrada no sentido do edifício da junta de freguesia, entramos no “bairro novo”, construído nos anos seguintes ao 25 de Abril. Santa Clara de Louredo, a localidade, nasceu a partir de uma quinta com o mesmo nome, um complexo agrícola que, no século XIX, se desenvolveu por ação da herdeira Mariana Ribeiro de Sousa e do seu esposo, Mariano de Sousa Feio, 1.º conde da Boavista. As cercanias permanecem na posse da família brasonada, hoje representada pela Casa Agrícola Visconde da Corte, e o que conhecemos como Boavista não é mais do que este casario recente, erguido em terreno ocupado.
À sombra, a poucos passos do edifício da junta de freguesia, que alberga também um bar e uma creche, espreita Maurílio Lourenço para o outro lado da estrada. Dá-lhe que fazer aquele gigantesco monte de brita que colocaram no lado esquerdo do cruzamento que dá entrada para a localidade. Está ali desde fevereiro ou março, garante, para servir as obras no IP2, mas se está, é porque “o dono da terra, o senhor visconde, cedeu aquele terreno ali, com outro tão grande que tem do lado”.
“Corta o ar à gente e faz levantar poeira para cima das casas”, reclama. E, pior do que isso, “corta a vista à terra”, roubando--lhe sentido ao nome, claro está. Antigo motorista na Base Aérea nº. 11, Maurílio já conta 75 anos e alimenta a convicção de que vive numa “terra sossegada”, que até tem atraído para viver muita gente de Beja, também por “ser mais barato”, mas à qual pesa a desonra de não ter ainda um pavilhão multiusos. “A gente nem uma casa para ver um espetáculo, nem nada. Qualquer terra tem isso, terras mais pequenas têm isso”, lamenta, sentindo--se injustiçado.
Junto à igreja matriz, que se liga à quinta mãe, Francisco Lourenço tem casa com vista para a propriedade do patrão, a Casa Agrícola Visconde da Corte. Encostado ao muro do quintal, mostra as habilidades do seu pombo amestrado, o Chico, “criado à mão” pelo filho, enquanto comenta que é um dos cinco trabalhadores da terra que ainda restam ao serviço do grande proprietário local. “Já chegámos a trabalhar 10 e agora, conforme se vão reformando, não metem mais ninguém”. A esposa, por seu turno, é uma das que engrossa a fatia dos “80 por cento” que julga terem trabalho na cidade.
Ao grupo que se senta ao postigo, junta-se agora a filha da dona da casa, cujas portas se mantêm escancaradas. Susete Caeiro, de 59 anos, regressa de Beja, onde acaba de cumprir mais um dia de trabalho num infantário da cidade e garante que não é caso único. “Os que trabalham, estão todos em Beja. Se vier aqui de manhã ou a meio da tarde, só vai encontrar gente de idade”. Membro do grupo coral Rosinhas de Santa Clara de Louredo (ver caixa), Susete é muito ciosa do sítio onde nasceu e vive, bem “diferente da cidade, porque nos conhecemos todos uns aos outros”, e admite que por nada deixaria a terra natal pelo sítio onde trabalha. Afinal, são oito quilómetros apenas, ida e volta, distância que muitos bejenses não se incomodam de fazer para comer “mais barato”. Ali, na rua principal, onde se concentra a restauração local, espera-se agora que o sol desapareça no horizonte e a fome aperte para os lados de Beja.
Hortas nas terras do visconde
São também propriedade da família do visconde da Corte as hortas que vêm sendo cultivadas à entrada de Santa Clara de Louredo, do lado direito da estrada. A exploração dos talhões, perto de 50, começou logo a seguir ao 25 de Abril e que, se saiba, esta cedência só deu problemas há perto de um ano. Na altura, o proprietário, Francisco castro Ribeiro, tornou pública a intenção de mudar a localização dos hortejos para o lado esquerdo da estrada, e de banir as barracas por questões de saúde pública. Nem a junta de freguesia nem os hortelões – quase todos reformados, que semeiam para consumo próprio – concordaram com o novo local proposto, por não ter água suficiente. Entretanto, a polémica arrefeceu e as hortas não mudaram de sítio.
Rosinhas de Santa Clara
Santa Clara de Louredo tem um movimento associativo “muito forte”, que garante uma oferta de atividades ao longo de todo o ano, mas que exerce a sua missão “sem condições nenhumas, praticamente na casa uns dos outros”, considera o presidente da junta de freguesia, António Leandro. Entre as coletividades locais, destacam-se a associação juvenil Animus Jovem, bem como o Clube de Caça e Pesca e o Louredense Futebol Clube. Como uma secção deste último, surge o jovem grupo coral feminino Rosinhas de Santa Clara de Louredo, cuja popularidade tem vindo a crescer, como se pode ver pela sua preenchida agenda de verão. São 16 ao todo, com idades entre os 17 e os 75 anos, têm apenas dois anos, já provaram que cantam mesmo bem (foram filmadas pelo realizador Tiago Pereira, para o projeto A Música Portuguesa a Gostar dela Própria) e foram o único grupo coral da freguesia a ter a ousadia de ser mais do que só uma ideia. “E sem apoios nenhuns; vão cantar e têm que pagar”, elogia o autarca.
O caso do pavilhão multiusos
Dignificar as associações com sedes próprias seria um dos propósitos do pavilhão multiusos que chegou a ter projeto de arquitetura, elaborado pelos serviços do município de Beja, e um empréstimo aprovado no valor de 300 mil euros. Tudo isto no “anterior mandato”, como sublinha um voto de protesto, aprovado numa assembleia de freguesia de janeiro de 2011. O documento lamenta a “falta de vontade política” por parte do atual executivo, liderado por Jorge Pulido Valente, que “pelo segundo ano consecutivo” não contemplou a execução do referido pavilhão no seu plano de atividades e orçamento. E repudia assim o que designa de “atitude discriminatória para com a população de Santa Clara de Louredo”.
António Leandro
Presidente da Junta de Freguesia de Santa Clara de Louredo
Sendo uma freguesia tão próxima da cidade, Santa Clara de Louredo consegue ter vida própria?
Nós estamos muito perto de Beja, para o bem e para o mal. Como temos aqui muita restauração, à hora de almoço isto enche e as pessoas esperam em fila para poderem almoçar. Há quem diga que é preferível vir almoçar à Boavista do que dentro da própria cidade, porque se demora menos tempo e há estacionamento. Além disso, temos tudo à mão, farmácia, grandes superfícies comerciais, etc. A parte negativa é que se as pessoas correm até Beja para tudo, também o fazem para trabalhar e para viver. Por isso é que temos que tentar angariar as pessoas para a freguesia, criando condições para que não tenham que procurar nada fora dela. Pensámos num pavilhão multiusos, que resolveria uma série de situações.
E em que pé se encontra esse projeto?
Aqui não há terrenos particulares, os terrenos que existem são quase todos do senhor visconde. Em 2009, finalmente conseguimos desbloquear a situação, através de um projeto de urbanização que foi proposto pela dona, que entretanto vendeu esse terreno a um empreiteiro. Uma das contrapartidas era um terreno para o salão de festas, que seria um espaço “25 em um”. Para atividade física, para as sedes das associações; o bar, que existe aqui no recinto da junta, também mudaria para lá e isso permitiria libertar espaço para uma creche com outras dimensões, dando hipótese a que mais pessoas pudessem aqui deixar as suas crianças. O projeto chegou a estar candidatado ao QREN para um financiamento a 80 por cento, mas, de um momento para o outro, a câmara municipal, que se tinha mostrado interessada até 2009, deixou-o cair. E o loteamento também não avançou porque o empreiteiro não conseguiu financiamento. Deixar cair este projeto é como andar para trás, porque não há forma de agarrar as pessoas.
Quais são aqui as atividades económicas de maior relevo?
Temos olival, temos um lagar, queijarias, sapateiro e restaurantes, que são muito fortes e continuam a ter movimento. Há uma grande tradição de fabrico de queijo, que se mantém com algumas unidades, mas que já não é o que era.
Quantos são os habitantes de Santa Clara de Louredo, segundo os resultados provisórios do Censos 2011?
Perdemos 95 pessoas; temos neste momento 865. É uma perda enorme porque as pessoas querem morar na Boavista mas não têm casa. Por isso é uma aldeia tão frequentada. Temos aqui um movimento de pessoas ao fim de semana que ninguém imagina estando de fora. As pessoas vivem em Beja ou noutras aldeias mas ao fim de semana vêm para cá, porque têm cá os familiares. A nossa escola primária tem 25 crianças, mas são muitas mais a que estão por cá ao fim de semana.