quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

PULO DO LOBO ONDE O GUADIANA SE ENGASGA.

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Portugal a Pé - No Pulo do Lobo onde o Guadiana se «engasga»

Nuno Ferreira recorda uma Primavera alentejana, «benigna e precoce», uma caminhada até às quedas de água do Pulo do Lobo. Conversas carregadas de memórias: a lampreia que já não aparece; os montes despidos de gente, as mortes nas pedras traiçoeiras.

Nuno Ferreira* | terça-feira, 7 de Dezembro de 2010

É sábado, em Vale do Poço, concelho de Serpa. Venho do cenário pós-industrial das Minas de São Domingos e pretendo seguir para o Pulo do Lobo, as tais quedas de águas no Guadiana que caem de mais de 20 metros de altura entaladas numa garganta tão apertada que até «um lobo as transpõe de um salto». Mas sábado é sábado, dia de confraternização, do não se fazer nada, de minis (essa instituição alentejana) e conversa entre secretos de porco preto. Entabular conversação nestes dias de gargantas oleadas é mais fácil. Pergunta um aldeão: «Atão e tu estás andando a pé? Senta-te homem, que não ficas pagando mais...Queres beber o quê?» Cria-se um círculo de cadeiras em meu redor. Um idoso com evidentes deficiências auditivas pergunta: «O que é que ele está dizendo?» O outro explica tão alto que dir-se-ia possuir um megafone na laringe: «Este homem é jornalista e está andando a pé...não é isso? E atão agora, vais para onde? Pulo do Lobo? Home, isso ainda é longe...Deixa-te estar aqui descansando. Bebes mais uma mini?»

Entre o Vale do Poço e o Pulo do Lobo, em plena primavera de 2008, benigna e precoce, a luz do sol abençoa os campos que ondulam ao sabor do trigo, pintalgados aqui e ali por manchas erráticas de papoilas e oliveiras. Serpa, a branca, aparece e desaparece ao longe, numa miragem. Bandos gregários de porcos pretos povoam os montes juntamente com os abrigos metálicos para as porcas parirem.

Uma carrinha de caixa aberta por momentos interrompe a solidão da estrada. Desaparece na curva mais próxima. Junto a uma exploração solitária, o moinho de vento faz um «vxxxxxzzzzz...»metálico sobre a minha cabeça. Uma ovelha e dois ou três cães saltam ao caminho. Querem ver-me, seguir-me. Na ausência de seres humanos, os animais acompanham-me: porquinhos pretos mamando nas tetas da mamã porca junto a abrigos metálicos preparados para estas parirem, vacas e bois especados do lado de lá da vedação metálica ao ver aparecer do nada um ser de mochila às costas, um rebanho de ovelhas debandando assustado.

Por ali, cada monte tem um nome: O Passa Leve, o Pena Ventosa. De há uns tempos a esta parte, existem quase mais montes que pessoas. Manuel Cavaco, 48 anos, é um dos últimos. Vive em Cabeceira de Vale Queimado, a dois quilómetros do Pulo do Lobo, numa pequena e humilde casa branca. «aqui já não há quase ninguém, a maioria dos montes estão abandonados», comenta de sorriso envergonhado nos beiços. Um pequenino cão preto segue-lhe as pisadas até à fornalha onde faz carvão para vender. Nos bons velhos tempos, ainda pescava sável e lampreia no Pulo do Lobo, uma corda grossa atada a uma rocha, uma rede com um gorro. «Em descendo lá baixo, não há medo. Nunca escorreguei. E nesse tempo, vendia-se bem a lampreia. Agora já não se apanha nada».

Em descendo até ao Pulo do Lobo pela margem esquerda, a de Serpa, sou surpreendido por um casal estrangeiro pedalando furiosamente uma bicicleta dupla encosta acima. Não lhes invejo a sorte.

Do lado do concelho de Mértola, uma estrada desemboca num miradouro sobre as rochas, permitindo observar o repelão das águas em fúria em segurança. Do lado de Serpa, a amálgama de pedras em erosão, a miríade de pequenas entradas e saídas nas rochas, buraco aqui, buraco ali, transforma a aproximação às águas revoltosas do engasgado Guadiana muito perigosa. «A maioria das pessoas fica lá em cima e acaba por não ver nada», explicaram-me mais tarde em Serpa, «não há condições de segurança para andar lá em baixo».

Insisti comigo mesmo que não podia largar o Pulo do Lobo sem uma foto. Conseguia ouvir o turbilhão da torrente de água a cair mas não enxergava quase nada porque existia sempre mais uma rocha para trepar. A determinada altura, larguei a roupa num local seco para tentar chegar o mais perto possível da queda de água em calções. Em boa hora, dei-me conta do perigo estúpido da situação. Tirei uma foto e vim embora.

Mais tarde, em Serpa, António Mestre, conhecido por «Pinta Xarolas», ex-pescador de sável e lampreia no «Pego dos Sáveis», a parte inferior da queda de água onde paravam os pescadores, contou-me que um dia ia lá ficando: «Pescávamos a lampreia com uma vara que segurava um arco de madeira com um gorro de rede lá dentro. Ia a puxar a vara para tirar um peixe, escorreguei, fiquei balançando preso à corda».

O «Pinta Xarolas» atava a corda a uma rocha de 15 metros. Descia. «Se calhava não chegar à água, voltava a atar a corda a outra rocha até chegar à pilheirinha onde me sentava», contou. Dos que ali pescavam com cordas como ele, contou os vivos pelos dedos: «O Ti Beatriz, o António Neves...o Zé Pelica já morreu...morreram quase todos».

Com as barragens, acabaram-se o peixe e as noites de 50 a 60 lampreias, a fogueira lá em cima, nas rochas cimeiras, preparada para o convívio. «Tenho muitas saudades. Se ainda houvesse lampreia, mesmo com esta idade, era capaz de descer essas rochas más outra vez», sonhava em voz alta o «Pinta Xarolas».

Do Pulo do Lobo a Serpa corre uma estrada desolada, os campos vedados de um e do outro lado das bermas. Numa herdade, leio numa placa: «É permitido até 14 de Março apanhar cogumelos às quartas e domingos». Sucedem-se as grandes herdades de caça turística. «Os ricos de Lisboa caçam aí perdizes, lebres, até veados...» explicam-me. À porta de uma herdade, um homem de colete à Coronel Tapioca encosta-se a um jeepe fala ao telemóvel: «O engenheiro que venha cá ver isto. Temos de resolver a situação até ao fim de semana».

A luz enviesada do fim do dia surpreende-me a dois quilómetros das imperiais da Cervejaria Lebrinha e de uma boa cabeça de borrego assada quando um homem numa Renault me oferece boleia: «Aguentas aí um bocadinho, estou cortando erva para as minhas duas éguas e já abalamos». Deixa-me à porta da cervejaria - «Bebe duas por mim»- e convida-me para a partida de futebol no dia seguinte. Resultado: Futebol Clube de Serpa-4; São Marcos da Ataboeira-0.



(*) Nuno Ferreira nasceu em Aveiro em 1962. Licenciou-se em comunicação social na Universidade Nova de Lisboa. Foi colaborador permanente do semanário Expresso de 86 a 89, ano em que ingressou nos quadros do jornal Público (até 2006). Nos últimos 20 anos fez reportagens de cariz social. No Jornal Público manteve uma crónica satírica intitulada “Ficções do País Obscuro” e escreveu sobre música popular americana. Recebeu, entre outros, o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube de Jornalistas do Porto com o trabalho «Route 66 a Estrada da América» (1996). No ano seguinte recebeu o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube Português de Imprensa com o trabalho «A Índia de Comboio». Em 2007 publicou conjuntamente com Pedro Faria o livro «Ao Volante do Poder».