quarta-feira, 22 de julho de 2015

MARVÃO ---- NOS TRILHOS DO CONTRABANDO

Marvão - Nos trilhos do contrabando

O Percurso do Contrabando Romântico do Café faz-se no concelho de Marvão, Alentejo. O passeio pela Serra de São Mamede recorda histórias dos tempos em que as fronteiras eram controladas por guardas-fiscais e os bens essenciais escasseavam, quer em Portugal, quer em Espanha. A Serra de São Mamede é o cenário desta homenagem aos contrabandistas, sobretudo de café, devido à indústria de torrefacção que então existia em Marvão.

Sara Pelicano | sábado, 24 de Julho de 2010

«Carabineros». «Carabineros». Um grito surdo entre a vegetação da Serra de São Mamede, Alentejo, alerta para a presença da guarda-fiscal. O grupo de contrabandistas separa-se e cada um tenta a sua sorte ludibriando os guardas, tentando chegar a bom porto com a mercadoria que carrega. É na escuridão da noite que os homens das aldeias da raia alentejana partem rumo a Espanha. Nas costas carregam, essencialmente, café, produto que escasseia do outro lado da fronteira. O regresso, feito na mesma noite da partida, faz-se com o que em terras lusas escasseia, ou não há. O contrabando foi um sustento adicional, ou mesmo único, para muitas famílias durante gerações, agora é motivo de percurso turístico, organizado pela Câmara Municipal de Marvão.

José Cristino, 73 anos, conta, emotivo, a vida de contrabandista. «Fiz isto toda a minha vida. Tinha um patrão que encomendava a mercadoria para trazer de Espanha». Encontramo-nos com José em La Fontañera. Na entrada da aldeia dois marcos brancos no chão delimitam a fronteira. O responsável pela organização do Percurso do Contrabando Romântico do Café, António Garreio, afirma que aquela aldeia espanhola terá nascido apenas pelo contrabando. «Aqui quase todos eram contrabandistas. As próprias lojas viviam dessa troca de mercadoria. Com a abertura das fronteiras, a aldeia praticamente morreu», explica António Garreio.

O contrabando está intimamente ligado a histórias de vida difíceis. Os bens essenciais escasseava, assim como o trabalho. Esta troca de mercadorias permitia a sobrevivência de famílias inteiras. «Eram tempos muito difíceis. Numa noite fazíamos cem ou mais quilómetros para ir a Espanha e voltar», vai contando José Cristino. O medo de ser apanhado pela guarda-fiscal era uma constante. Os «carabineros» como também eram conhecidos «escondiam-se muitas vezes entre a vegetação da serra e depois saiam do esconderijo quando passávamos», comenta José Cristino, com os olhos brilhantes pela recordação. «Eu nunca fui apanhado, mas tive amigos que foram», acrescenta. O truque do contrabandista aqui era separar-se do grupo e tentar salvar-se, a si e à mercadoria. «Algumas vezes os guardas atiravam a matar. Mas sobretudo apreendiam a mercadoria», sublinha o nosso contrabandista.

As histórias de contrabando repetem-se ao longo de toda a raia portuguesa. Nestas terras do Alto Alentejo a dureza do terreno torna-as mais difíceis. O percurso que agora se inaugura e que faz uma homenagem aos contrabandistas chama-se «do Café», porque em Marvão existiam «várias fábricas de torrefacção, o que não existia em Espanha, logo eram um bom mercado», explica António Garreio. O percurso de 7,5 quilómetros visita a já referia aldeia de La Fontañera, mas também as aldeias de Galegos e Pitaranha, no concelho de Marvão. Durante este passeio pela Serra de São Mamede, poderão «ser feitos pequenas recriações de momentos de tensão entre os guardas e os contrabandistas, para dar uma imagem mais próxima do que terá sido aqueles tempos», comenta António Garreio.

A paisagem faz-se com uma vegetação variada, salpicada pelos tons cinzentos das pedras da Serra de São Mamede. A vila fortificada de Marvão, no alto dos seus 800 metros, é presença constante. Por sua vez o rio Sever é corrente refrescante e também mote a muitas histórias. «Quantas vezes não ficámos aqui, junto ao rio, à espera que baixasse para podermos passar. Não podíamos ter ajudas nenhumas no rio, senão os guardas identificavam os trilhos e aí estávamos tramados», diz José Cristino enquanto recupera a energia da juventude para calcorrear o terreno acentuado da serra.

José Cristino repara nas horas. O Sol começa a esconder-se por detrás do pico que sustenta a vila de Marvão. Comenta que tem de ir, a mulher espera-o para jantar. Regressamos à vila de La Fontañera. É emocionado pela oportunidade de poder contar a sua história de vida que se despede. Guarda saudades desses tempos? «Era novo, mas foram tempos muito difíceis, muito difíceis. Não tenho saudades», remata José Cristino. As fronteiras portuguesas e espanhola ficaram abertas em 1986, com a entrada destes dois países na União Europeia.