Há anos vivi por uns tempos numa terra encarcerada onde o alcatrão das estradas se derretia sob o sol da tarde. Onde os mosquitos cobriam os vidros das janelas, à noite, à espreita. Onde uma cegonha, sobre uma torre de relógio, ficava especada a olhar o Guadiana, tão parado quanto ela.
Nessa terra, parada, encarcerada, onde os velhos fazem rodas e, tapando uma das orelhas num gesto hierático, cantam e arrastam cantos com cheiro a açafrão e orégãos... Nessa terra há outro velho que nunca vi nessas rodas. Não sei se canta cantos alentejanos.
Sei que esse velho desceu as ruas inclinadas de Mértola dançando com a mulher que agora não lhe gaba os cabelos brancos desvairados nem com ele compartilha os copos de vinho que consegue cravar aos turistas que não se assustam à sua aproximação.
Estamos numa esplanada, olhando para as osgas que se penduram sob as traves dos toldos e ele chega. Alguém conta que há dias, esse velho tentou esconder-se atrás de uma carrinha para mijar e, quando já estava com a coisa na mão, a carrinha arranca. Não se assustou. Continuou. Como se não reparasse que a parede que escolheu para a sua privacidade já tinha desabado.
Estamos na esplanada e ele aproxima-se. Viu pela pinta ou lá o quê que éramos professores. Decide-nos dar uma lição... "por acaso, vossas excelências sabem o que é um "polímato"? E regala-se com a ignorância de quem nunca se deu ao trabalho de ir ao dicionário... Até porque ninguém usa a palavra. Menos ele... e o gajo que fez o dicionário... De seguida fala de Florbela Espanca, cita versos e curva-se perante Edgar Allan Poe, mais que poeta, como ele, bêbedo...
Mais tarde, noutro dia, cruzar-se-á de novo connosco, mas, ao contrário de todas as pessoas da terra que já nos cadastraram nos seus curtos livrinhos de coscuvilhices, ele não nos reconhecerá. Já não pertencemos ao seu mundo que espalhou em peças de teatro, em poesias desconstrutivistas (não era bem esse o nome da corrente literária a que pertenceu, mas ele tem mesmo a figura de Gilles Deleuze desgrenhado...), em cadernos de banda desenhada, em quadros de alentejanos a guardar porcos e em paisagens do presépio Museu onde vive. Não somos do círculo dos que lhe já compraram um desses quadros que pinta sobre a fotocópia da fotocópia de um original que já fez noutra era. Não somos as pessoas que se horrorizavam com os seus animaizinhos de estimação: duas ratazanas escapadas das vassouras de uma mulher de Beja que se acoutaram sobre o seu ombro - porque reconheciam-lhe a bondade - garante... Não nos conhece e volta a citar Espanca e Poe e a perguntar se sabemos o que é um "polímato". Nós calamos, dizemos que não. E no tempo circular de Mértola, o Mário Elias volta a fazer discursos laudatórios ao vinho e aos poetas que morrem na sarjeta com uma garrafa ao lado.
Há dias descobri que a Casa das Artes de Mértola passou a ter o seu nome... "Casa das Artes Mário Elias"... Terá morrido? - estas homenagens costumam ter este sentido. No Google nem uma notícia biográfica se encontra. Sei que no verão passado ainda o vi. Eu não estava numa esplanada. Por isso passou rente e seguiu... A caminho de paredes que desabam.