Quando eu era pequeno vivia no campo.
Não sendo eu propriamente da época recolectora da nossa civilização, o certo é que vivia com bastante liberdade e acabava por comer um pouco de tudo o que por ali apanhava. Por exemplo, neste tempo eram as romãs e os marmelos..
Aprendi assim a distinguir púcaras de cogumelos venenosos, túberas de bufas de cão, o agrião da arrabaça, etc.
Por vezes enganava-me e ficava adoentado. Como nunca contava em casa qual a fruta que tinha comido com medo que se zangassem comigo, cada dor de barriga era interpretada pela minha mãe como um provável mau olhado.
E se tinha apanhado algum mau olhado só havia uma solução: ser benzido para o mau olhado.
E eu gostava daquilo,achava que me fazia bem.
Quantas taxas moderadoras seria poupadas hoje nas urgencias dos nossos hospitais se a tradição se tivesse mantido...
A benzedura, que podia ser feita por qualquer pessoa, era uma reza simples, uma coisa mágica.
Várias vezes inventei dores de barriga, quando não tinha nada com que me entretivesse, para ser benzido.
Punha-se a minha mãe defronte de mim sentados numas cadeirinhas de bunho, baixinhas, num canto qualquer da nossa casa.
À nossa frente, uma tigelinha branca, meia de água, em cima da mesa, ou da arca.
E depois dizia assim, como que rezando, olhando para mim nos olhos ( o que quase me fazia confessar que não estava assim a sentir-me tão mal) e fazendo cruzes com a mão:
«Eu te benzo água fria, em nome de Deus e da Virgem Maria». Repetia 9 vezes, porque estas coisas eram sempre de nove em nove.
Ás vezes, eu, que tinha a responsabilidade de ir dobrando os deditos para contar até 9, descuidava-me, e deixava passar até 10. Assim não valia.
Tínhamos de esperar um bocadinho e começar de novo:
«Eu te benzo água fria, em nome de Deus e da Virgem Maria...»
Depois, íamos buscar o púcaro do azeite, em esmalte azul, que estava junto ao pote onde guardávamos o azeite da colheita para todo o ano.
Eu com os meus olhitos fixos na tigela de água, concentrado, e a minha mãe, tal como já aprendera com a sua mãe, e esta por sua vez com a dela, com o cabo duma colher havia de deixar cair 3 pingos.
Só 3.
E, com eles, pausadamente, as palavras, ditas lentamente, enquanto se deixavam cair os 3 pingos de azeite na água da chávena:
«Esta pinga é a do olhado...esta não é... e esta também não é». Ou seja, só era a primeira, as outras duas nunca hei-de saber para que serviam...
E pronto, ali estava o resultado: Se as pingas ficassem as 3 redondinhas, tipo gema de ovo, a boiar na água, sem resquícios de mistura, não havia olhado.
Se, caso contrário, por artes sabe lá do quê a primeira pinga de azeite se desfizesse, ou seja, se ela se espalhasse a todo o diâmetro da tigela, era mais do que certo: eu tinha apanhado um mau olhado. De alguma bruxa...
E se assim fosse, tinha de ser benzido de seguida.
Nessas ocasiões, a minha mãe fazia um ar grave, e avançava, com a coragem característica que todas as mães têm para enfrentar as bruxas que se atrevessem a tocar nos seus filhos. Fosse com um dedo, fosse com um olho...
« Três olhos de olharam mal, dois te hão-de olhar bem; em nome do pai, do filho e do espírito santo amém»
« Três olhos de olharam mal, dois te hão-de olhar bem; em nome do pai, do filho e do espírito santo amém»
« Três olhos de olharam mal, dois te hão-de olhar bem; em nome do pai, do filho e do espírito santo amém»
E no final das 9 vezes (ou seria 9 x 9 ?) eu levantava-me, finalmente, aliviado visivelmente melhor.
Sem saber se tinha sido da reza, ou se tinha começado enfim, a digerir as ameixas quentes que tinha roubado na horta do vizinho.