sexta-feira, 1 de março de 2013

O MALTEZ DE PAU E MANTA



«Quem tem vagar, faz colheres». Era uma expressão que ouvi muitas vezes na minha juventude, quando não tinha nada útil para fazer e me entretinha a fazer qualquer coisa sem importância. Hoje estou nessa situação; e, como não tenho nada mais útil para fazer, vou escrever um pouco sobre os malteses que iam pedir e pernoitar no monte onde nasci e passei a juventude – o monte da Nossa Senhora (que, por sinal, tem um nome que parece querer indicar protecção). Este monte era constituído por dois grandes edifícios, um para habitação de duas famílias e outro com diversas divisões para palheiros e estábulos (a que nós chamávamos arramadas).
Assim que começava o Inverno, começavam a aparecer os malteses ao pôr-do-sol; por vezes, quando vinha da escola, encontrava-os sentados antes de chegar ao monte, à espera do Sol desaparecer para não chegarem muito cedo – quando os víamos assim à espera, dizíamos que estavam a “fazer sol baixo”. Mesmo que fossem dois por companheiros, nunca chegavam juntos: aparecia um, com um bordão para se arrumar e enxotar os cães (que assim que os viam estavam logo prontos para lhes ir às canelas), um saco a tiracolo e a manta ao ombro. Dirigia-se à porta da minha avó – a quem eles chamavam a “mãe dos pobres” – e batiam à porta dizendo: 
- Ó lavradora, peço o favor de me dar poisada esta noite e qualquer coisita p’rà bucha.
E a minha avó, já toda curvada, aparecia à porta dizendo-lhe: 
- Olhe, vá além p’rà arramada, que mais logo já lhe levam a ceia. 
Havia noites em que se juntavam três ou quatro à volta de uma fogueira, que era feita a um canto da arramada das vacas. Assim que podia, eu ia-me juntar a esse grupo, para ouvir deliciado os contos e as histórias que eles contavam, umas talvez inventadas por eles, outras que ouviam noutros lados.
Tinham fama de malfeitores; todavia, na minha vivência com os que frequentavam aquela zona, nunca ouvi dizer que cometessem crime algum. Andavam nesta vida homens novos que, pela dificuldade de arranjar trabalho, se encostavam à mendicidade e dali iam passando, e outros a quem a idade tirava as capacidades de trabalhar e, sem família, assim encontravam uma maneira de subsistir. 
Alguns arranjavam uns saquinhos de ervas para chás que vendiam, outros faziam cestos em cana ou em verga. Lembro-me de um que trazia uma espécie de binóculos com um disco, que se ia rodando e apareciam umas imagens contando uma história; era conhecido por o “velhote das vistas”. Apareciam outros com livros de contos de 16 páginas, da Princesa Magalona, do Touro Azul, do menino da mata e o seu cão piloto etc. etc..
Ainda hoje me recordo dos nomes ou apelidos de alguns desses malteses: era o Mira Olho (talvez por ser um pouco vesgo) o Salta Paredes (diziam que tinha fugido da prisão, daí o nome), o Carmona, o Gadelha, o António Honrado e muitos outros dos quais nunca soube o nome.
Quando, no princípio da década de 80, sai do meu monte, já não apareciam malteses por aquela zona: uns porque a morte os livrou daquela vida, outros porque a Segurança Social lhes deitou a mão. Assim finalizou um ciclo de vida que espero que não se repita.