quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A Matança do Porco





A matança anual do porco, criado no curral por cada família, assumiu-se como um evento importantíssimo, hás uns tempos atrás.
O porco tinha um papel importante, porque um porco era a coisa mais bem aproveitada que podia haver.
A carne do porco tinha de dar para o ano inteiro, e a única forma de a conservar era através de métodos ancestrais, como a salga – para presuntos e toucinhos, a conserva na manteiga – para os lombos, os enchidos de fumeiro - chouriça e chouriça preta, palaios (paios).

A própria banha, para cozinhar e barrar o pão, desempenhava o papel das margarinas o ano inteiro.

Cada peça do porco tinha um sabor e um destino diferentes:
Os pézinhos para a coentrada. As tripas para a couve. A papada para comer em talhadas fritas com pão, de manhã com o café.
Os presuntos só se podiam partir de Junho em diante, não sei se por ser nessa altura que a cura de sal terminava, ou se era por ter acabado a chouriça.
As peças de lombo frito ou costela, conservados em manteiga vermelha numa panela de esmalte, em zonas interditas da despensa, eram para servir apenas nas ocasiões em que se recebiam visitas importantes.

O dia da matança, lembro-me, era sempre um sábado frio, de Novembro em diante. 
Quando fossem boas luas.
A lua tinha uma importância decisiva, e contavam-se histórias de salgadeiras putrefactas, de matanças que a desafiaram, julgo, em quarto minguante.

Os preparativos começavam na véspera, com o porco a fazer uma dieta ligeira, como nós fazemos agora, quando vamos medir o colesterol.
Havia uma movimentação diferente.
Por vezes, o dono nem dormia - tinha dó do porco.
Um belo sovão, gordo e luzidio, de boa boca, que deixava chegar à mão e quase fazia parte da família.
Mas tinha mais dó da barriga dos filhos.
...

Numa esquina abrigada, uma banca de madeira.
Uma rua do Monte, em terra, varrida com uma vassoura de resmono. Ou de lentisco.
Uma balança de vara, e um pau para meter ao ombro.
Uma caiadela na casa.

A manhã começava cedo, com o juntar dos homens.
Um copo de aguardente, tapado com uma filhó.
A aguardente serve para surpreender os homens, fazendo-os encontrar uma coragem que julgam não ter.

Amarrar o bicho, encaminhá-lo para junto da banca. Segurá-lo com força, stress no animal porco e stress no animal homem, até que se dava, enfim, a facada.
Certeira, sem furar o cano do vento.

Os grunhidos faziam as crianças pequenas chorar, e correr para dentro da casa, vazia, sem mulher que lhe valesse, todas a aparar o sangue. Mexer o sangue com vinagre e alhos, para fazer a Moleja, ao lume num tacho de arame.
Não era de cobre, era de arame.
Cabia a elas irem lavar as tripas no barranco. Em água corrente que levasse a merda toda barranco a baixo.
As delgadas para encher, em chouriças, e as tripas grossas para comer no jantar de couve.
Voltavam lavadas, cheias de rodelas de laranja. A laranja , creio, por ser o aromático mais à mão para tirar o cheiro das tripas.

Chamuscar o animal, com tojos na ponta de uma forquilha, ou com um maçarico ligado a uma garrafa de gaz.
Musgadeiras, facas pretas, tisnadas, sem lâminas, para raspar a pele de fora sem raspar a carne, preciosa.
As unhas, que só saem a arder, e é para o valentão de serviço. E havia sempre um.
E para depois lavar, um velhote. Já sem força na faca, nem no resto, para despejar a água, com um púcaro, enquanto os outros raspavam com força.
«Desmanchar» o porco, com os preceitos transmitidos pelos antepassados, que nunca conheceram a «costeleta» cortada por uma serra eléctrica. A costela sim, que agora se chama entrecosto.
«Queres ver o teu corpo, abre um porco». Nunca disseram para que animal se devia olhar para ver a alma, mas ao ver o olhar do porco, agonizante, supus que a agonia fosse igual para todos, mesmo para os humanos.

Sacos de farinha em papel estendidos no chão para dispor a carne: os presuntos, as espádas, o toucinho, as banhas para fritar e fazer manteiga e torresmos. Do rissol.
A cabeça, com os queixos para assar uma destas noites.
Os ossos da espinha, as orelhas.
A carne diversa, para as chouriças, para ser picada dois dias mais tarde e misturada com alho, vinho,
pimentão vermelho moído. Outra, num alguidar mais pequeno, com diferente cheiro, com sangue e cominhos, para a chouriça preta.

Um novato aventurava-se a fazer a goela, a atar a tripa do cú.
Porque tirar as tripas é tarefa de especialista. Delicada. Feita com a precisão de um cirurgião, com um canivete afiadinho. A ver se não «havia azar».
Não se podia dizer em que poderia consistir o azar, e por momentos cheguei a pensar que «azar» podia ser o porco ressuscitar, desafiando as leis da vida e da morte.
Mas, das vezes em que houve azar, foi um azar muito mal cheiroso, que fez andar tudo numa correria.
E o homem que teve o azar, mal comeu umas três sopas de Moleja, consternado.

Na pesagem, tirava-se um quilo para o queixo.
E se o porco fosse comprado, pertencia ao dono oferecer previamente os lombinhos, ou «lagartinhos», para o petisco,
previamente à pesagem.

As sopas de pão da moleja, quadradas. Diferentes das sopas dos jantares de feijão, ou de chicharos.
Com cacholas e bofes do porco. A cachola é a dura e o bofe é o mole. E o coração que é elástico. 
O meu também é.

As primeiras carnes eram grelhadas com sal grosso nas brasas da fogueira e depois com alhos e coentros picados por cima e um fiozinho de azeite.

Uma vinhaça da boa em garrafão de palhinha. Oferecido por quem não vende para fora. 
Mas se vendesse, de repente todas as marcas, mesma as de preços proibitivos perdiam todo o interesse.
Porque a pinga caseira é infinitamente melhor, e sabia mesmo a vinho de uvas, a fruta, a madeira, sabores intensos que nunca encontrei em nenhuma garrafa.

Hoje, julgo a tradição da matança do porco é proibida, embora se suponha que ainda possa ser praticada em segredo.
Todavia, a carne que encontramos disposta nos pontos onde a compramos, antes de pertencerem ao dono da loja, também pertenceram antes a um animal vivo…