Porto Covo, terra mítica para mim, é assim como uma segunda terra-mãe, cujo espírito do lugar e misticismo, involuntária e subconscientemente eu e meus irmãos fomos transmitindo aos nossos filhos e sobrinhos.
Devo ter ido pela primeira vez “a banhos” para Porto-Covo em 1945, pois lembro-me vagamente que fomos transportados para lá pelo tio Jacinto, que, solteiro ainda e toda a vida, tinha a profissão de almocreve “carreteiro” na aldeia.
Fomos fazer os preparativos a casa da avó Camila, em Santa Luzia. Lá se fizeram as popias caiadas (ainda hoje as recordo a enxugar ao sol, perto da porta do amplo quintal), em dois enormes varais, precisamente os mesmos que eram usados na secagem das linguiças. Parece-me ainda ouvir a voz do avô Generoso, no seu bom humor:
- Meninas, recolham ”a frasca” por causa do Piloto.
Ultimavam-se os preparativos com a cozedura do pão (uma arroba de farinha) para ir fresco e mole.
No dia da partida levantava-se o tio às quatro e trinta da madrugada para dar de comer às mulas, procurar a sua manta de viagem, listrada de branco e preto tecida no velho tear, a respectiva candeia de almocreve e ajustar os animais ao carro de parelha.
Este tinha um banco corrido de taipal a taipal, onde se sentava o tio Jacinto, a tia Augusta Camila e a mãe. Eu e a minha irmã íamos atrás, sentadas sobre colchões instalados no fundo do carro.
O pai ficava em Colos, na nossa casa, qual Tomé da Póvoa dos “Fidalgos da Casa Mourisca” como honrado agricultor a labutar pela terra e pela sua profissão de abegão. Só lá iria ter connosco aos fins-de-semana, na sua velha pasteleira.
Saíamos pela madrugada, com o carro de mulas bem atafulhado de “tasana” (uma tralha de coisas). No fundo do carro iam as esteiras de palhinha, os colchões de boa lã, dobrados ao meio e atados com baraços. Por cima, algum as mantas e um “talego” com os lençóis e as toalhas, dois travesseiros compridos e alguma roupa de vestir.
Levava-se uma infusa de folha-de-Flandres com cinco litros de azeite, a quarta de barro para a água, a trempe de ferro, o fogareiro um saco de linho grosso (fiado pela avó) cheio de farinha, etc… Durante aquele mês, a mãe cozeria o pão no forno local.
A viagem era longa, perto de dez léguas. Os caminhos eram maus, com buracos, e os tombos do carro”amassavam as costelas”, no dizer de minha mãe. Viagem árdua, a afectar de dores os rins, a sua dureza era amenizada pela beleza das paisagens e pelas referências que a mãe ia fazendo ao atingir sítios conhecidos e montes alentejanos onde vivia gente amiga.
Um pouco para além do Cercal junto a uma grande árvore, fazia-se a paragem para almoçar e descansarmos. A mãe e os tios juntavam lenha (gravetos caídos das árvores) e faziam a fogueira. A mãe tirava do carro a trempe, o tacho de barro e os pratos de esmalte e confeccionava umas sopas de pão com tomate e ovos.
Depois de almoço prosseguíamos viagem. O caminho era pela Cabeça da Cabra, com estrada velha e sinuosa de terra batida, que ora atravessava ribeiras espraiadas ora estreitava com as plantas. Então o tio descia e com uma navalha cortava os ramos que impediam a passagem.
À medida que se aproximava o litoral, antevíamos com expectativa o momento em que havia de surgir uma paisagem onde confinassem, numa mesma linha, céu e mar.
Pelas quatro e meia da tarde, enfim, estafados e ansiosos, fazíamos a entrada triunfal em Porto Covo, parando no fim da rua, mesmo em frente da baía.
Estas são as mais antigas recordações das idas para o PortoCovo, onde na infância, despertei a imaginação, na adolescência, as suas belezas me incitaram à poesia, na idade adulta encontrei quem me acompanharia para o resto da vida