A Venda
Com os corpos dormentes da enxada, na horta, ou cansados da labuta contínua, a tratar dos bichos, ao lusco-fusco esfregavam as botas na erva, batiam os pés - para tirar a maior – compunham a fralda da camisa, e os passos dos homens iam sempre na mesma direção - na direção da Venda.
Ainda não se tinha vulgarizado o nome de café, e também não se dizia mercearia, nem mesmo Taberna, ou adega - era A Venda.
E na Venda, que eu conheci bem num Monte, no interior do Alentejo, vendia-se de tudo.
Nas Vendas, não se faziam as compras; compravam-se as "coisas", fazia-se o «avio».
Coisas de mercearia, como vinho aos litros - levando garrafa para encher – os grãos, chicharos e feijão, medidos no litro de madeira e passada uma resoira, para tirar o cagúlo- rouba-me no preço mas não me roubes na medida - diziam.
Folhas de toucinho com vários dedos de altura e Sabão, azul em barras. Cortados com a mesma faca? Havia o açúcar Sidul e o café Sical ou Delícia Negra (um mais forte, outro menos - mais «àzinha de mosca»).
Algumas coisas embaladas, mas a maioria avulso, a peso, à medida, a olho. Tudo enrolado em papel pardo, de cima do balcão para dentro duma alcofa, depois de conferido em voz alta pelo dono da Venda, somado em contas, com muitas parcelas e a prova dos nove ao lado.
O pagamento ou o prego.
O prego era uma coisa de que se falava baixinho, além mais para a ponta do balcão corrido.
«Deixe estar, não paga hoje, paga para a semana, tenha agente saúde.»
Então, meta no prego e vá mais um maço de Provisórios.
O Café era moído na hora - aquele cheiro - vendido num cartuxo de jornal, pesado numa balança branca, com um prato e um ponteiro.
Umas três velas de sebo, para engraxar as botas. Cardadas.
O petróleo, que era à parte – houve quem o metesse na carne das chouriças por engano pensando ser vinho - numa garrafa de "zinebra", para acender a candeia, à noite a um canto, depois de lhe limpar a chaminé de vidro, ou quando esse estivesse partido, o de lata, mandado fazer no latoeiro, fácil de atiçar o morrão.
Lá estava, atrás do balcão, o Jogo dos Furos.
Pendurado, com uma caneta Bic já sem carga, amarrada com um fio de guita encerado, para furar.
Furava-se primeiro, naturalmente, em cima da àguia do benfica (se fosse na cabeça era melhor), ou no corpo do leão, ou na crista do dragão, que deve ser onde saem mais facas.
Não sendo possível, servia mesmo no quadrado do Belenenses, que era sempre o que estava menos furado e ficava para a última.
Para sair, tinha de se ter fé naquilo aonde se furava.
Tentava-se furar a sorte, mas saía quase sempre, apenas, um rebuçadinho...
Queres de laranja ou queres de limão?
Ás vezes saía uma bela faquinha, nova em folha, com o cabo colorido e era uma alegria. E no fim, quem acabasse cada um dos 4 quadros que perfaziam o todo, ganhava a lanterna, e o que acabasse o jogo dum todo, agarrava o relógio de pulso, ou mesmo, às vezes, uma telefonia.
E será que a telefonia toca? Toca, Toca, dizia o dono da Venda.
No outro canto da Venda, tanto podia ser a Taberna, como a Barbearia.
Na Venda, conversava-se. Muitas conversas, muitas vozes de homens ao mesmo tempo, que animavam, confortavam a alma, as vozes.
Sabia-se de tudo o que pudesse interessar, de todas as novidades se falava na Venda. Havia os que têm conversa, e os que não tem conversa que se veja.
Prevalecia sempre -a oralidade. Só mais tarde veio a TV, que, numa prateleira, só serviu para calar as pessoas e lhes apagar as memórias..
Cada qual mostrava-se como era, e cada um era, sobretudo, o que ia construindo em cada um dos outros, pelas palavras.
Cada um com o seu feitio. Uns que se dão melhor com uns do que com outros. Sempre assim hà-de ser.
Jogavam à carta.
Aos «três setes», que é jogo de homem. Esta coisa de sueca é moda nova, e bisca, burro «dempé» e burro deitado são coisas de gaiatos.
Aos «3 setes». Não há trunfos, nem pode haver sinais. E quando se joga paus, joga-se bem, que o pau é a defesa dum homem.
Joga-se de parceiros. Cruzados, frente a frente.Dois contra dois,bebem os quatro.
Embaralham-se as cartas, parte-se o baralho, e dão-se de 5 a 5, em duas voltas, até perfazer 10 cada um, da direita para a esquerda, de roda.
Há quem não conte o jogo e há quem leve o jogo contado, da primeira à última vaza para saber que cartas faltam sair.
E há quem às vezes ponha as cartas na mesa. Bate-as com força, e está ganha a partida.
Tardes inteiras entretidos à roda das cartas. Já batidas e varridas, vezes sem conta.
Contar as vazas, ver as figuras e as cartas brancas. O rei vale 3, o cavalo, a sota. A manilha- nos três setes - não vale nada, é um sete, apenas.
O seis é o seis, e o sete é o sete, mais nada.
O às vale muito, mas mata pouco. Todos lhe montam o cerco para matar os àzes.
O que mata mais são os ternos e os duques. Só me saem duques e senas tristes, repetia um.
É a tua vez de jogar, diz outro.
E o taberneiro lá ia enchendo os copos. Há um que só bebe branco, por causa da azia, outro que é gasosa, porque está arlampado- tem que se respeitar o beber deles.
Paga quem perde, pertence ser assim. A menos que algum se lembre de, por sua conta, pedir mais uma rodada, em o jogo sendo demorado e a sede maior que a coragem.
Mete-se o copo à boca um nadinha, só para o provar, mastigar o vinho ao de leve. E depois, zás, cá para baixo.
No final de cada partida, conta-se a pontuação e puxa-se.
Puxa-se o feijão.
Puxa-se o feijão cru, que mais logo em casa, logo se puxa o feijão cozido, quando a mulher repartir as sopas, da tijela para os pratos, de algum jantar de feijão.
Uma caixa de fósforos, a dividir a pontuação. Puxam-se os tentos de um lado ( pertence ser atrás), e à frente, as polhas. 10 tentos é uma polha.
Joga-se até fazer 4 polhas, até aos 40 tentos. Normalmente feijões, podendo ser grãos, chicharos, pedrinhas da rua.
Quando uns fazem as vazas todas, e os outros não matam vez nenhuma, é um Capote. Levam uma Capote, é uma bigodaça.
É uma vergonha, levar um capote.
Mas elas, as cartas, é que mandam.
E quando elas não querem, não venham nem mandem.
Há-os que se sentam à roda dos que jogam, e entram quando algum tem de sair, ou toma conta do jogo, se ele for ao urinol.
A «Venda», vejo-o agora, era afinal, um nome mal posto.
Com os olhos vendados, andamos nós agora, e pensamos que sabemos muito.